A edição 144 da Revista Filosofia Ciência & Vida, publicada recentemente pela Editora Escala, contou com a participação do professor Edimar Brígido, que integra o corpo docente da Faculdade Vicentina. Filosofia da Ciência foi o tema da entrevista, conduzida pelo filósofo Fábio Antonio Gabriel.

Edimar Brígido é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, com Especialização em Ciências da Religião pela Facel, e Especialização em Filosofia com ênfase em Ética pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. É mestre e doutor em Filosofia pela mesma universidade. Atualmente, tem trabalhado com as disciplinas de Direito e Filosofia, Filosofia da Linguagem, Filosofia Política, Filosofia da Ciência, Filosofia da Natureza e Ética.

A seguir, confira parte da entrevista com o professor.

Revista Filosofia 1

O que é Filosofia da Ciência? De que trata?

Prof. Edimar - Tomando a Filosofia em seu conjunto milenar, percebemos que a Filosofia da Ciência é uma área relativamente nova na tradição filosófica ocidental, que se dedica, basicamente, a investigar de forma crítica os fundamentos e os limites do saber e da prática científica. Seu campo investigativo encontra-se nucleado em torno das discussões que envolvem o valor da ciência para a vida humana, a responsabilidade moral dos cientistas, bem como o impacto que as pesquisas e todo o desenvolvimento tecnológico podem representar para as pessoas, para o futuro e para o mundo como um todo. Na verdade, consideramos que a Filosofia da Ciência é uma proposta de reflexão a respeito da relação existente entre o poder, o dever e o saber que permeiam as práticas da comunidade científica.

Toda essa problemática ganha relevos mais significativos a partir do início do século XVII, quando, na Europa, começamos a observar um crescente otimismo com relação ao  desenvolvimento científico. Com o advento do que se convencionou denominar de “Revolução Científica”, a ciência moderna desenvolveu uma linha de pesquisa pautada pelas exigências da autonomia e do rigor, passando a concentrar seus esforços no incremento de um método próprio e original, capaz de solucionar todos os mistérios, encontrando respostas para as mais diversas aporias que envolvem a vida da humanidade.

Se tomarmos como base de comparação os séculos que antecederam o setecentos, observaremos que os estudos antigos e medievais que existiam nas mais diversas searas do conhecimento estavam sempre permeados pelo discurso filosófico e, posteriormente, pelo teológico. Neste sentido, a filosofia e a ciência encontravam-se misturadas em uma mesma fórmula profundamente homogênea; raramente era possível distinguir uma da outra.  A ciência não possuía um método próprio, permanecendo dependente dos esforços e dos estudos realizados por filósofos e teólogos. As mudanças mais significativas neste panorama só foram registradas a partir do momento em que há, na Modernidade, uma ruptura entre a ciência e a filosofia. O litígio entre ambas propiciou o nascimento de um novo e fértil campo de estudos na filosofia, o qual, mais tarde, passamos a denominar de Filosofia da Ciência.  Para ser mais exato, só podemos falar de uma Filosofia da Ciência, no sentido stricto, a partir do final do século XIX, a partir de uma querela entre os pensadores ingleses William Whewell e John Stuart Mill.

Podemos falar em progresso científico ou ruptura de paradigmas científicos?

Prof. Edimar - Essa questão não é fácil de responder. Existem diferentes interpretações a esse respeito. Eu acredito em uma posição intermediária capaz de dialogar com as duas perspectivas, respeitando suas particularidades. Vou explicar. O conhecimento produzido pela ciência progride, isso é um fato e pode ser atestado pela tecnologia que faz parte do dia a dia de todos nós. A física que Aristóteles elaborou perdurou por mais de vinte séculos de forma hegemônica, sendo substituída, não em sua totalidade, somente pela física de Newton. Houve um progresso, isto é evidente. Neste processo, algumas coisas herdadas de teorias anteriores são descartadas e outras aperfeiçoadas. Desta forma, a ciência progride e possibilita uma revisão contínua de suas fontes de informação e inspiração. Thomas Kuhn prefere utilizar a ideia de paradigmas. Se concordarmos com ele, então cada grande teoria científica terá uma vigência e, ao atingir seu limite, não respondendo mais aos anseios da comunidade científica, deverá ser naturalmente substituída por uma outra teoria (ou paradigma) mais adequada. Os paradigmas tornam a ciência menos estável, uma vez que suscitam uma  revisão constante das bases de pesquisa, mas, por outro lado, tornam a ciência mais confiável, evitando dogmatismos extremos.

Como filósofo você entende que é possível falar em uma neutralidade da ciência?

Prof. Edimar - Veja bem, são duas coisas diferentes, embora estejam convergidas para um mesmo fenômeno. Primeiro podemos pensar na neutralidade do operador da ciência; depois, podemos discutir a possibilidade da neutralidade da ciência em si. Deste modo, temos que considerar que o mundo da ciência aspira pela neutralidade e pela objetividade, isso é certo. Todavia, temos que considerar que mesmo o mais imparcial dos cientistas é sempre um indivíduo que está sujeito às mais variadas fontes externas e internas de motivação. O cientista é um ser humano, possui crenças, preconceitos e sentimentos. Desse modo, a neutralidade deve ser compreendida como um ideal a ser perseguido, embora, como sabemos, nem sempre seja alcançada. A ciência, no meu entendimento, não é um saber neutro. Existem motivações de ordem econômica e política que interferem de modo radical na determinação do que será pesquisado. Para comprovar o que estamos falando basta verificar o poder que as indústrias farmacêuticas têm. Elas decidem, por meio do financiamento de pesquisa, quais doenças serão investigadas, tendo em vista uma possível terapia ou cura. Um outro exemplo clássico nos é revelado pela história. A energia nuclear poderia ser utilizada para o bem da humanidade, mas a decisão do uso que seria feito dessa tecnologia coube a quem financiou a pesquisa.

A filosofia da ciência se relaciona com a bioética? Se sim, em quais aspectos? Quais seriam os autores de relevância no aspecto da bioética?

Revista Filosofia 4Prof. Edimar - Sim, há uma relação verdadeira e cada vez mais necessária entre a Filosofia da Ciência e a Bioética. Essa relação se justifica, em grande parte, devido ao avanço científico e tecnológico presenciado no decorrer do século passado, o qual ocasionou uma nova forma de organização das relações do homem em sociedade. Por um lado, a ciência tornou a vida mais “fácil”, investindo em equipamentos que tornaram os afazeres do cotidiano mais acessíveis e mais rápidos. Além disso, a comunicação se desenvolveu com uma velocidade incrível. A internet alterou de forma definitiva as relações entre as pessoas. Por outro lado, todo esse aparente “avanço” não foi capaz de evitar guerras e destruição. O Nazismo protagonizou uma das cenas mais difíceis da história recente, provocando o homem a uma verdadeira reflexão a respeito dos limites da pesquisa científica. É neste ínterim que nasce a Bioética, como resposta ao graves crimes cometidos contra a humanidade durante a Segunda Guerra Mundial. Oficialmente a “Ética da Vida” nasce na década de 70, nos Estados Unidos, trata-se de uma reflexão a respeito dos impactos que o avanço das ciências biológicas, especialmente a medicina, podem surtir sobre a vida. A finalidade desse estudo consiste em confrontar o poder da ciência com o dever e a responsabilidade moral que o cientista precisa ter para com o ser humano em sua integralidade.

Questões como clonagem humana, pesquisa com animais, pesquisas com seres humanos, fertilização in-vitro, células tronco, criogenia e alimentos transgênicos tornaram-se realidade nos dias atuais. Porém, a questão que se levanta é a seguinte: será que tudo aquilo que a ciência pode fazer (porque tem poder para isso), ela deve fazer? Esse é o questionamento proposto pela Bioética, e que encontra terreno fértil para debate entre os filósofos que se dedicam ao estudo da ciência. Estamos falando dos limites da pesquisa científica. Quais seriam esses limites? O filósofo é quem apresenta estes questionamentos, propondo um olhar mais atento e mediato acerca de questões vitais. Entre os grandes nomes da bioética, podemos destacar: D. Roy, Guy Durant, W. Reich, Onora O’niall e Van R. Potter. Este último pesquisador (Potter), inclusive, é o autor de um dos artigos mais importantes nessa área, intitulado: Bioethics, bridge to the future.