Nascido em Crato (CE), em 1844, Cícero Romão Batista foi ordenado padre em novembro de 1870 e tornou-se uma das figuras mais conhecidas no nordeste brasileiro. Para estudar mais profundamente os motivos que levaram a Igreja a condená-lo e, recentemente, reconcilá-lo, o professor Dr. Edimar Brígido, que faz parte do corpo docente da Faculdade Vicentina, entrevistou a Dra. Annette Dumoulin. A entrevista foi realizada no final de 2018 e publicada na Revista Eletrônica Correlatio (volume 17, número 2).

Sobre a entrevistada*: Annette Dumoulin nasceu em Liège, Bélgica, no ano de 1935. É mestre e doutora em Ciência da Educação, com especialização em Psicologia da Religião pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica. Foi professora nas faculdades de Teologia, Psicologia e Pedagogia da mesma universidade. É religiosa da Congregação de Nossa Senhora, e co-fundadora do Centro de Psicologia da Religião (CPR), que contribui com as pesquisas sobre a história e a vida de Padre Cícero. É autora das seguintes obras: O Padre Cícero por ele mesmo (2015); Em Sonho: uma Boa Conversa Entre o Romeiro Sebastião e Padre Cícero (2017); Padre Cícero: Santo dos Pobres, Santo da Igreja (2017).

*Currículo publicado na Revista Correlatio.

Confira parte da entrevista, a seguir.

A senhora poderia nos falar um pouco a respeito da importância da figura de padre Cícero para o povo do Sertão do Cariri?

Dra. Annette Dumoulin - Padre Cícero é, antes de tudo, o Padrinho do povo do Sertão, não somente do Cariri! Ele entrou nas famílias como um membro importante e respeitado: ancião, conselheiro, protetor, intercessor, santo. Não se trata de um “apadrinhamento” como acontecia com os “coronéis”.

Como o Padre Cícero foi rejeitado pela própria Igreja, durante dezenas de anos, sua devoção foi transmitida dentro das famílias, de pais para filhos, e se perpetua por gerações numa “catequese familial” (ver a carta do Cardeal Parolin, nº 5).

Nesse sentido, achamos que ser afilhado do Padrinho é percebido como uma valorização da identidade do afilhado, dando-lhe um sentimento de dignidade e de pertença.

Mesmo sendo uma figura tão carismática, despertando a simpatia de ricos e pobres, quais foram os principais motivos que levaram a Igreja a condenar padre Cícero, após o “milagre de Juazeiro”?

Dra. Annette Dumoulin - 1. Antes do fenômeno da transformação da hóstia em sangue, na boca de Maria de Araújo, (1/03/1889) os arquivos revelam a valorização desse sacerdote, não só pelos bispos de Fortaleza (Dom Luiz e Dom Joaquim), mas pelo clero que o procurava para conselhos, confissões...

2. O primeiro motivo foi o fato que dom Joaquim não tinha sido comunicado pessoalmente do fenómeno, mas por um artigo de jornal! A suposta desobediência de Maria de Araújo a uma ordem do Bispo (ir morar no Crato) confirmou para dom Joaquim que a Beata era embusteira e que o “milagre” era uma farsa.

3. Um segundo motivo foi de ordem teológica: pode ou não adorar os panos ensanguentados como sendo o próprio sangue de Cristo, segundo São Tomás de Aquino (latria-adoração ou dulia-veneração). As opiniões eram divergentes entre dom Joaquim e padre Cícero.

4. Depois de dois inquéritos contraditórios enviados na Sagrada Congregação do Santo Ofício, Roma condenou o fenômeno. Padre Cícero e outros padres que acreditavam no milagre foram suspensos de ordem.

5. Vendo que a quantidade de romeiros não diminuía, o Bispo considerou que era preciso que Padre Cícero saísse de Juazeiro. Comunicou essa opinião a Roma. Padre Cícero teve que sair sob pena de excomunhão. Ele foi para Salgueiro (Pernambuco) e pegou o navio para Roma. Voltou de Roma “perdoado”, com a promessa de guardar um “silêncio obsequioso” sobre o fenómeno. O que ele fez.

6. O Bispo ficou insatisfeito e só devolveu a padre Cícero a licença de celebrar fora de Juazeiro... tudo isso na tentativa de ver diminuir a afluência dos romeiros.

7. Quando se criou a diocese do Crato, o novo Bispo, dom Quintino, devolveu essa licença e Padre Cícero voltou a celebrar no Juazeiro; mas, por pouco tempo.

8. A “Guerra de 14” entre Franco Rabelo e Juazeiro reativou as condenações vindas de Roma. O terceiro Bispo de Fortaleza, dom Manuel, mandou mensagens ao Núncio que o Padre estava matando cristãos! Roma mandou um decreto de excomunhão, mas o Bispo, dom Quintino não aplicou a sentença e pediu ao Papa de retirar essa punição e devolver ao Padre a licença de celebrar. Roma atendeu parcialmente. A excomunhão foi revogada, mas o Padre foi “reduzido ao estado leigo”. É nessa situação que ele faleceu, recebendo os sacramentos como “leigo”.

Em 2015, nove anos depois do pedido feito pelo bispo Dom Fernando Panico, a Igreja atendeu a solicitação do prelado e reconciliou o padre Cícero com a Igreja. O que levou a Santa Sé a rever seu posicionamento inicial?

Dra. Annette Dumoulin - O bom senso e um estudo mais minucioso da vida do Padre Cícero! Além disso, a “teimosia” de milhões de romeiros apontando Padre Cícero como santo! Essa fidelidade impressiona quem observa e constata! “A voz do povo é a voz de Deus”! É o Cardeal Ratzinguer, então Presidente da Sagrada Congregação do Santo Ofício, que fez a proposta de reabrir o processo do Padre Cícero em vista de uma “reabilitação”. Esta se transformou em “reconciliação” deixando de lado as punições, e centralizando a questão sobre as “virtudes” humanas e pastorais do Padre Cícero e sua grande influência no Nordeste e no Brasil. É claro que o fato do Papa Francisco ser sul-americano deve ter influenciado esse novo posicionamento. Questão de sensibilidade e compreensão da realidade brasileira numa visão menos “canônica” e mais “humana”.

Para saber mais sobre a vida de Pe. Cícero e ler a entrevista na íntegra, clique aqui.